Coração Imaculado de Maria,
livrai-nos da maldição do aborto!

PARECER DO DR. CLÁUDIO FONTELES CONTRA A LIMINAR DO SUPREMO

ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL Nº 54-DF

RELATOR : EXMO. SR. MINISTRO MARCO AURÉLIO

AGRAVANTE : CONFEDERAÇÃO NACIONAL DOS TRABALHADORES NA SAÚDE-CNTS

Ementa:

1. O pleito, como apresentado, não autoriza o recurso à interpretação conforme a Constituição: considerações.

2. Anencefalia. Primazia jurídica do direito à vida: considerações.

3. Indeferimento do pleito

1. A Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde ajuíza argüição de descumprimento de preceito fundamental.

2. Considera “como ato do Poder Público causador da lesão o conjunto representado pelos arts. 124, 126, caput, e 128, I e II, do Código Penal” (petição inicial – fls. 3 – in fine).

3. Fundamenta-se em que tal “conjunto normativo” vulnera a dignidade da pessoa humana (artigo 1º, IV), o princípio da legalidade, liberdade e autonomia da vontade (artigo 5º, II) e o direito à saúde (artigo 6º, caput e 196) “todos da Constituição da República” (ainda: pórtico da petição inicial a fls. 3).

4. Desenvolve sua pretensão asseverando:

a) que a patologia da anencefalia “torna absolutamente inviável a vida extrauterina” (fls. 4), daí porque não se está a falar do “aborto eugênico, cujo fundamento é eventual deficiência grave de que seja o feto portador. Nessa última hipótese, pressupõe-se a viabilidade da vida extra-uterina do ser nascido, o que não é o caso em relação à anencefalia” (nota de pé de páginas a fls. 6, da petição inicial)

b) “O que se visa, em última análise, é a interpretação conforme a Constituição da disciplina legal dada ao aborto pela legislação penal infraconstitucional, para explicitar que ela não se aplica aos casos de antecipação terapêutica do parto na hipótese de fetos portadores de anencefalia, devidamente certificada por médico habilitado” (petição inicial: item 19 a fls. 12)

c) acentuando que “não há viabilidade de uma outra vida, sequer um nascituro” (petição inicial: item 26 a fls. 15) “o foco da atenção há de voltar-se para o estado da gestante”, para extrair que a permanência do feto no útero materno:

– fere a dignidade da pessoa humana na medida em que “a convivência diuturna com a triste realidade e a lembrança ininterrupta do feto dentro de seu corpo, que nunca poderá se tornar ser vivo, podem ser comparadas à tortura psicológica (petição inicial: item 30 a fls. 18)

– fere o princípio da legalidade, porque ” antecipação terapêutica do parte em hipóteses de gravidez de feto anencefálico não está vedada no ordenamento jurídico (petição inicial: item 33 a fls. 19)

– fere o direito à saúde porque ” a antecipação do parto em hipótese de gravidez de feto anencefálico é o único procedimento médico cabível para obviar o risco e a dor da gestante” (petição inicial: item 35 a fls. 20)

5. Cuidemos do alegado.

6. Estabeleço que o recurso à interpretação conforme à Constituição, pedra de toque do pleito em exame, conduz-nos à reflexão sobre os limites do uso deste instrumento na avaliação dos preceitos normativos.

7. Valho-me, aqui, dos precisos ensinamentos de Rui Medeiros – “A Decisão de Inconstitucionalidade: os autores, o conteúdo e os efeitos da decisão de inconstitucionalidade da lei-, postos no específico Capítulo II, desta obra, a versar sobre “O Conteúdo da Decisão de Inconstitucionalidade”, e principio por reproduzir seu alerta, verbis:

“Por outro lado, e agora quanto à relações entre os órgãos de fiscalização da constitucionalidade em geral e o legislador, ninguém ignora que a interpretação conforme à Constituição se pode converter num meio de os órgãos de controle se substituírem ao legislador. “Perante os perigos da usurpação do conteúdo normativo-constitucional por um conteúdo legislativo apócrifo” salta à vista a importância da determinação dos limites da interpretação conforme à Constituição. Este é, justamente, um dos domínios em que se joga a problemática do “activismo” ou da “criatividade” dos juizes constitucionais. Há que impedir a transformação, ainda que com efeitos limitados ao caso concreto da pretensa interpretação adequadora em verdadeira e própria modificação da disposição fiscalizada”. A relevância da questão não pode ser subestimada com base na idéia de que quem tem competência para proferir uma decisão de inconstitucionalidade de um preceito legal pode, por maioria de razão, optar por uma decisão interpretativa. Com efeito, “quando o conteúdo atribuído à lei pelo órgão fiscalizador através do apelo à interpretação conforme à Constituição contém já não um minus, mas antes um aliud em face do conteúdo originário da lei”, o órgão fiscalizador “intervém mais fortemente nas competências do legislador do que nas hipóteses em que profere uma decisão de invalidade”: enquanto após a decisão de invalidade da lei a nova conformação material positiva é realizada diretamente pelo legislador, no caso de decisão interpretativa tal tarefa é levada a cabo pelo próprio órgão fiscalizador. Este, mais do que interpretar a lei, corrige-a ou converte-a e, obviamente, a correcção e a conversão da lei atingem mais intensamente as competências do legislador do que a mera invalidação ou não aplicação da lei. “A admissibilidade de uma correcção intrínseca da lei” é, portanto, muito mais atentatória ” da preferência legislativa constitucionalmente concretizadora do que a declaração ou reconhecimento de inconstitucionalidade.” (obra citada – pg. 300/1, grifei)

8. Embora não expresse adesão aos que consideram os sentidos literais possíveis da lei como o limite da interpretação conforme à Constituição – “Os sentidos literais possíveis não constituem, de per si, limites à interpretação lato sensu corretiva da lei, porque, nesta sede, à letra se pode preferir o sentido que a letra traiu” (obra citada – pg. 305, grifamos), Rui Medeiros adverte, verbis:

“Sobretudo, e este é o aspecto que importa aqui realçar, a relevância do cânone da interpretação conforme à Constituição não exclui, antes tem como pressuposto de sua correta consideração, uma bem consciente demarcação dos níveis jurídico-constitucional e jurídico-legislativo ordinário, não pretendendo anular numa confusão de planos a relativa autonomia hermenêutico-jurídico de ambos.” (obra citada – pg. 308, grifei)

9. E bem prosseguiu, verbis:

“Por outro lado, como referiu Volker Haak em 1963, o sentido inequívoco que a lei enquanto tal apresenta, abstraindo da conexão sistemática com a Constituição, não pode ser posto em causa pela interpretação conforme à Constituição, visto que o elemento sistemático-teleológico transcendente à lei permite sempre, de per si, o resultado conforme à Constituição e, por isso, para excluir o resultado conforme com o sistema é necessário buscar um limite fora do sistema. Se não fosse assim, nunca haveria leis inconstitucionais: a conversão da ratio legis ou do elemento teleológico (…) aos compromissos e ao espírito do sistema político-normativo constitucional, aliada à possibilidade de ultrapassar os sentidos literais possíveis, afastaria em sede interpretativa o problema das leis inconstitucionais. Uma tal conclusão seria, manifestamente, incompatível com a previsão pelo legislador constitucional do fenômeno da inconstitucionalidade da lei. Os limites à interpretação em conformidade com a Constituição têm, portanto, de decorrer da interpretação da lei enquanto tal.” (obra citada – pg. 309/10, grifei)

10. Mesmo no campo das concepções subjetivistas, ou objetivistas, da interpretação, corretamente anotou Rui Medeiros, verbis:

“Mas, tanto numa linha subjectivista, como numa perspectiva eclética ou até, como demonstra a posição de Oliveira Ascensão ou de Volker Haak, objectivista moderada, aquilo que o legislador quis claramente e como querido, o declarou deve ser tomado como conteúdo da sua regulamentação. Por isso, pelo menos em princípio – ou, caso se perfilhe a posição de Robert Alexy, desde que não se apresentem motivos racionais capazes de anular as razões que determinam esses limites -, só quando a vontade do legislador não pode ser reconhecida em tais termos, está indicada uma interpretação conforme à Constituição. O apelo à Constituição em sede de interpretação em sentido estrito não pode neste sentido, contrariar a letra e a intenção claramente reconhecida do legislador ou, numa versão mais restritiva, a intenção que está subjacente à tendência geral da lei ou às opções fundamentais nela consagradas.” (obra citada – pg. 312)

11. E contemplando o tema à luz das leis pré-constitucionais, tal aqui acontece, enfatiza Rui Medeiros, verbis:

“Em contrapartida, a reivindicação de um objectivismo actualista abre espaço para certas teorias que flexibilizam os limites da interpretação conforme à nova Constituição das leis pré-constitucionais. Não é por acaso que se fala neste tipo de leis. De facto, embora as lei pós-constitucionais com o decurso do tempo também se tornem leis antigas, as referidas teorias preocupam-se, sobretudo, em acentuar a possibilidade de a interpretação conforme à Constituição contrariar a intenção do legislador (histórico) nos casos em que a lei em causa haja sido editada sob um outro regime, tanto mais que o princípio da separação de poderes tem, aqui, um peso bastante menor. Mas subsistem sempre limites. Não é possível, por exemplo, uma interpretação conforme à Constituição de um regulamento proveniente do tempo do nacional-socialismo, portanto imbuído do pensamento próprio da Administração do Estado Totalitário, que em nenhum aspecto satisfazia as exigências de determinabilidade do Estado de Direito. Ou seja, e este é o aspecto que nos interessa sublinhar, mesmo que se perfilhe esta concepção, deve ficar claro que está vedada aos juízes a ‘feitura’ de uma nova lei com conteúdo diferente da anterior: a interpretação conforme à Constituição não pode, em caso algum, converter-se em instrumento de revisão do Direito anterior à Constituição. Só que, na perspectiva do objectivismo actualista agora referida, enquanto a vontade do legislador documentada através da história do preceito, pode eventualmente limitar a interpretação conforme à Constituição de leis pós-constitucionais (não podendo ser falsificada através da interpretação em conformidade com a Constituição), basta, em relação a leis anteriores à Constituição, que o novo entendimento seja admitido pela letra do preceito e não contrarie o sentido objectivo da lei.” (obra citada – pg. 314, grifei)

12. Em síntese, releva Rui Medeiros, verbis:

“A correlação da lei significa apenas correcção da letra da lei, não podendo ser realizada quando os sentidos literais correspondem à intenção do legislador ou quando o resultado que se pretende alcançar não se harmonize com a teleologia imanente à lei. Para além disso, por mais desejável que se apresente uma alteração do sistema normativo, essa alteração pertence às fontes de direito, não ao intérprete (…). Razões extremamente ponderosas de segurança e de defesa contra o arbítrio alicerçam esta conclusão. Isto já para não falar do princípio da separação de poderes. A interpretação correctiva da lei em conformidade com a Constituição não se traduz, portanto, numa revisão da lei em conformidade com a Lei Fundamental.” (obra citada – pgs. 316/7)

13. Para concluir – e agora já no campo que Rui Medeiros dedicou às decisões modificativas e à reflexão sobre a jurisdição constitucional em sua função negativa, ou positiva, – é de se ler, verbis:

“III – Pelo contrário, à semelhança de GOMES CANOTILHO, o nosso ponto de partida – que, como se verá, é confirmado por uma leitura global do sistema português de fiscalização da constitucionalidade – é o de que o Tribunal Constitucional, entre nós, desempenha e não pode deixar de desempenhar fundamentalmente a função de jurisdictio: não é um legislador, ou, mesmo, superlegislador apócrifo. Sem dúvida que a função jurisdicional não é já hoje, nem se poderá mais compreender como a actividade de mera aplicação formal de um direito inteiramente dado. Mas à concreta realização do direito não compete a intencionalidade estratégica, reformadora e programática que corresponde aos poderes de direcção política e que no universo jurídico (melhor, político-jurídico) será própria do legislador. De facto, independentemente do significado que a tese do legislador negativo assume no modelo de justiça constitucional do Mestre de Viena e das objecções que podem ser dirigidas à visão Kelseniana da Constituição e do controlo da constitucionalidade, a contenção do controlo da constitucionalidade dentro dos limites do controlo negativo é justificada pelo princípio democrático e pelo princípio da separação e interdependência dos órgãos de soberania. O princípio da separação de poderes, embora não seja um princípio rígido, implica, no seu conteúdo essencial, a distinção entre legislação e jurisdição. O princípio democrático postula, por seu lado, que a decisão política seja tomada, directamente ou através de órgãos representativos politicamente responsáveis, pelo povo. A negação ou atenuação da separação entre legislação e jurisdição põe, inevitavelmente, em causa o próprio modelo democrático-representativo vigente. Como sublinha Vital Moreira, a jurisdição constitucional não está constitucionalmente habilitada para usurpar o papel do legislador ordinário, expressão da maioria de governo, substituindo-se àquele nas escolhas constitucionalmente admissíveis (…) A idéia fundamental é a de que ao juiz constitucional só compete averiguar se a lei é ou não contrária à Constituição, mas não lhe compete substituir-se ao legislador na formulação das soluções conformes à Constituição. Aqui continuam a ter plena validade as limitações decorrentes do princípio da maioria e da separação de poderes. É à maioria democraticamente legitimada para governar que compete fazer as leis e não aos juízes, mesmo ao juiz constitucional. A este só compete verificar se aquele legislou contra a Constituição. A introdução de um sistema de fiscalização jurisdicional da constitucionalidade das leis não retira, portanto, à lei a sua posição de centralidade no ordenamento jurídico-constitucional. (obra citada – pgs. 494/5, grifei)

14. Tudo assim posto, os textos normativos, apresentados pela autora, ensejam a interpretação conforme?

15. Por certo que não!

16. Os artigos 124 e 126 tipificam, criminalmente, o aborto provocado pela gestante, ou com seu consentimento (124) e o aborto provocado por terceiro (126).

17. Bastam-se no que enunciam, e como estritamente enunciam.

18. Aliás, injurídico, data venia, manusear-se com a interpretação conforme a dizer-se que na definição dos tipos penais incriminadores, não seja criminalizada tal situação.

19. No caso em estudo, há norma específica, a propósito, a do artigo 128 e é para ela que há de se voltar o tema da interpretação conforme. Reconheceu-o, aliás, a própria petição inicial, em seu item 9, a fls. 8, verbis:

“Note-se, a propósito, que a hipótese em exame só não foi expressamente abrigada no art. 128 do Código Penal como excrudente de punibilidade (ao lado das hipóteses de gestação que ofereça risco de vida à gestante ou resultante de estupro) porque em 1940, quando editada a Parte Especial daquele diploma a tecnologia existente não possibilitava o diagnóstico preciso de anomalias fetais incompativa, com a vida. Não se pode permitir, todavia, que o anacronismo da legislação penal impeça o resguardo de direitos fundamentais consagrados pela Constituição, privilegiando-se o positivismo exacerbado em detrimento da interpretação evolutiva e dos fins visados pela norma” (grifei)

20. Portanto, os artigos 124 e 126 passam muito ao largo da interpretação conforme.

21. O artigo 128 não a alberga, outrossim.

22. As situações extintivas da antijuridicidade, que enuncia, apresentam “o sentido inequívoco que a lei enquanto tal apresenta”, para que sejam rememoradas as palavras de Rui Medeiros (item 9, deste parecer), sentido inequívoco e preciso, que se completa, e legaliza o aborto:

a) para que a mãe não morra (aborto terapêutico)

b) se a mãe, vítima de estupro, consente no aborto (aborto sentimental)

23. A situação de anencefalia não se coaduna, por óbvio, nessas situações.

24. O feto anencéfalo não causa a morte da mãe. Afasta-o a própria petição inicial.

25. Se causasse tal situação, ter-se-ia diante o aborto terapêutico.

26. Quanto ao aborto sentimental não há discrepância na abalizada doutrina penal de que sua compreensão é limitadíssima à hipótese que enuncia: gravidez resultante de estupro. De se ler, Heleno Claudio Fragoso, verbis:

“O aborto sentimental (que se realiza em conseqüência de um crime) todavia não se confunde com o aborto eugênico (conveniência de evitar procriação indesejável) ou com o aborto por indicação social (miséria ou dificuldades econômicas dos pais), que são sempre criminosos perante nossa lei. A exclusão do crime depende aqui do prévio consentimento da ofendida ou de seu representante legal (se for incapaz), devendo o médico certificar-se da existência de estupro (e não de outro crime sexual). Trata-se de norma excepcional, que não admite interpretação analógica. Não pode ser ampliada para legitimar o aborto quando a mulher foi vítima de outro crime, como, por exemplo, o de sedução.” (in – Lições de Direito Penal – 7ª edição – pg. 123 – grifos do original e meu)

27. Por tais considerações, lugar não há a que se cogite de interpretação conforme a Constituição nos textos apresentados.

28. Para encerrar este tópico, ainda uma vez com Rui Medeiros, verbis:

“Daí a importância da afirmação da regra de que “o Tribunal Constitucional só pode declarar (ou não declarar) a inconstitucionalidade (ou ilegalidade) da norma em causa, mas não pode substituí-la por outra norma por ele criada (…) A função do Tribunal Constitucional é uma função de controle, de carácter essencialmente negativo (…) Ele é um contralegislador e não outro legislador.” (obra citada – pg. 496 – grifei)

29. Passo a outra linha de argumentação, e sustento que a vingar a tese do autor, sacrificado está o direito à vida.

30. Com efeito, está no caput, do artigo 5º, da Constituição Federal, que abre o Título alusivo aos “Direitos e Garantias Fundamentais, verbis:

“Art. 5º: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida…” (grifei)

31. Portanto o direito à vida é posto como marco primeiro, no espaço dos direitos fundamentais.

32. O autor desta ação tem por tema central do pleito o fato de que nos casos de anencefalia não há possibilidade de vida extra-uterina, então razão não há a que permaneça a gestação.

33. Mas se há normal processo de gestação vida intra-uterina existe.

34. E nos caos de anencefalia há o normal desenvolvimento físico do feto: formam-se

seus olhos; nariz; ouvidos; boca; mãos, enfim o que lhe permite sentir, e também braços; pernas; pés; pulmões; veias; sangue que corre, o coração.

35. Ora, o artigo 2º de nosso Código Civil, justo por não obscurecer esta realidade da vida que se forma no ventre materno, é textual, verbis:

“Artigo 2º: A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida, mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”. (grifei)

36. O artigo 4.1 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos é, igualmente

textual, verbis:

“Toda pessoa tem direito a que se respeite sua vida. Este direito estará protegido pela lei, no geral, a partir do momento da concepção (grifei)

37. A Convenção sobre os Direitos da Criança, no seu artigo 1º, reconhece o direito intrínseco à vida que tem todo ser humano concebido. O Preâmbulo desta Convenção é claro, verbis:

“a criança por falta da maturidade física e mental, necessita de proteção e cuidado especiais, aí incluída a proteção legal, tanto antes, como depois, do nascimento.”

38. Portanto, os diplomas legais, tanto do direito interno, quanto internacional, estabelecem que vida há, desde a concepção.

39. Eis porque não se revela correta a afirmação do il. advogado da autora quando, a buscar fazer prevalecer o direito da gestante, registrou que

“… por fatalidade, não há viabilidade de uma outra vida, sequer um nascituro, cujo interesse se possa eficazmente proteger”. (item 26, da petição inicial a fls. 15)

40. Ora, o próprio dicionarista Aurélio Buarque de Holanda, trazido à colação pelo il. advogado em nota de pé de página sobre a transcrição retro é textual em definir o nascituro como o ser humano já concebido, cujo nascimento se espera como fato futuro certo.

41. O bebê anencéfalo, por certo nascerá.

42. Pode viver segundos, minutos, horas, dias, e até meses. Isto é inquestionável!

43. E aqui o ponto nodal da controvérsia: a compreensão jurídica do direito à vida legitima a morte, dado o curto espaço de tempo da existência humana?

44. Por certo que não!

45. Se o tratamento normativo do tema, como vimos (itens 34/37, deste parecer), marcadamente protege a vida, desde a concepção, por certo é inferência lógica, inafastável, que o direito à vida não se pode medir pelo tempo, seja ele qual for, de uma sobrevida visível.

46. Estabeleço, portanto, e em construção estritamente jurídica, que o direito à vida é a temporal, vale dizer, não se avalia pelo tempo de duração da existência humana.

47. E se assim o é, e o é afetivamente, dada a clareza dos textos normativos importa prosseguir, e indagar, então: a dor temporal da gestante é causa bastante a obscurecer, e então relativizar, a compreensão jurídica do direito à vida, como venho de assentar?

49. Estou em que não!

50. De pronto, não são todas as gestante que, por sua dor, almejam livrar-se do ser humano, que existe em seus ventres maternos.

51. Há, outras também, gestantes, que, se experimentam a dor, superam-na e, acolhendo a vida presente em seu ser, deixam-na viver, pelo tempo possível.

52. Digo isso para assentar que a dor da gestante não é comum a todas as gestantes, de sorte que, e atento ao princípio jurídico da proporcionalidade, a temporalidade do direito à vida, como desenvolvi nos itens 42/45, retro, sobrepuja, por essa perspectiva, o direito da gestante não sentir a dor, posto que a dor não será partilhada por todas as gestantes, ao passo que todos os fetos anencefálos terão suprimidas suas vidas.

53. É de se reconhecer, outrossim, e mantido o raciocínio na ponderação de bens, que por certo o sofrer uma dor, mesmo que intensa, não ultrapassa o por cobro a uma vida, que

existe, intra-ulterina, e que, seja sempre reiterado, goza de toda a proteção normativa, tanto sob a ótica do direito interno, quanto internacional.

54. O feto no estado intra-uterino é ser humano, não é coisa!

55. Noutro giro de argumentação, é de se ter presente que o artigo 3º, inciso I da Constituição de nossa República expressa como objetivo seu, perene, verbis:

“I – construir uma sociedade livre, justa e solidária.” (grifei)

56. Ora, o pleito da autora, titulado por órgão que representa profissionais da área da saúde, impede possa acontecer a doação de órgãos do bebê anencéfalo a tantos outros bebês que, se têm normal formação do cérebro, todavia têm grave deficiência nos olhos, nos pulmões, nos rins, no coração, órgãos estes plenamente saudáveis no bebê anencéfalo, cuja morte prematura frustará a vida de outros bebês, assim também condenados a morrer, ou a não ver.

57. O pleito da autora, por certo, vai na contra-mão da construção da sociedade solidária a que tantos de nós, brasileiras e brasileiros, aspiramos, e o ser solidário é modo eficaz de instituir a cultura da vida.

58. Quer por ser injurídico, no caso apresentado, o recurso à interpretação conforme a Constituição, quer pela primazia jurídica do direito à vida, como aqui desenvolvida, o pleito é de ser indeferido.

Brasília, 18 de agosto de 2004.

CLAUDIO FONTELES

PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA

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