Coração Imaculado de Maria,
livrai-nos da maldição do aborto!

Para que serve uma criança “monstruosa”?

 

(um escritor japonês, prêmio Nobel de Literatura, responde a essa pergunta)

Segundo os defensores do aborto eugênico, uma criança defeituosa é um peso inútil que a mulher carrega no ventre. A ex-deputada Marta Suplicy (PT/SP), em seu projeto de lei 1956/96, compara as grávidas de bebês incuráveis com “caixões ambulantes”. Ao detectar, por meio de uma ultra-sonografia, que a “mercadoria-filho” vai sair defeituosa da fábrica, nada melhor do que excluí-la prontamente da linha de montagem. Pensar o contrário seria pura perda de tempo.

Ou será que não? A matéria a seguir, publicada em julho de 1995 na revista Cidade Nova, mostra a influência decisiva que uma criança “monstruosa”, nascida em 1963 (naquela época não estava disponível a ultra-sonografia nos hospitais) teve sobre a vida de seu pai, um famoso escritor japonês.

 

Anápolis, 22 de setembro de 2002.
Pe. Luiz Carlos Lodi da Cruz
Presidente do Pró-Vida de Anápolis


 

UMA VIDA QUE RENASCEU

O testemunho do escritor japonês Kenzaburo Oe, Nobel de Literatura de 1994. Seu relacionamento com o filho deficiente transforma radicalmente sua vida, dando-lhe uma nova dimensão.

Miguel Novak

kenzoe“A angústia se transforma em alegria”, assim começa um artigo de primeira página do Los Angeles Times sobre o romancista japonês Kenzaburo Oe, prêmio Nobel de Literatura 1994. Porém, não é dos sucessos literários do escritor que fala o artigo, mas da sua profunda experiência pessoal: por mais de 30 anos Oe escreveu em seus livros as palavras que seu filho, nascido com grave deficiência, não pôde pronunciar.

No entanto, há poucos anos, o filho reencontrou “a sua voz”: as suas composições musicais, muito originais no estilos clássico-moderno, se encontram entre as mais vendidas, no gênero, no mercado japonês. Também já foi anunciado o lançamento do primeiro CD no mercado norte-americano.

Mas passemos à história deste extraordinário diálogo pai-filho / escritor-músico.

Kenzaburo Oe (o escritor) tinha 10 anos quando acabou a Segunda Guerra Mundial; depois, durante muitos anos viu as tropas de ocupação, as cidades destruídas, as pessoas traumatizadas física e psicologicamente, a humilhação da derrota e uma enorme sensação de culpa coletiva.

Oe começou cedo sua atividade literária. A prosa e os ensaios neste período são densos, justamente pela situação vivida, e, como disse um crítico, são “carregados de pessimismo e desespero”.

Kenzaburo Oe transforma-se pouco a pouco no enfant terrible da literatura japonesa. Em 1958, ainda como estudante universitário, ganha, para grande surpresa de todos, o famoso prêmio Akutagawa por suas obras, claramente “de esquerda”.

Mas o sucesso o oprime.

O próprio Oe afirmou ser “imaturo e perigosamente instável, vacilante sob o peso da fama e pela responsabilidade de ser porta-voz de toda uma geração que andava à deriva por causa da destruição dos valores durante e depois da guerra”. Desse modo sua criatividade foi desaparecendo. No início dos anos 60, disse: “Não tinha sobre o que escrever; me sentia vazio, fracassado…”, embora sendo já famoso no Japão como escritor.

E chega o dia 13 de junho de 1963: nasce o seu primeiro filho. Quando Oe vê o recém-nascido, fica profundamente confuso: uma criatura monstruosa, parecendo ter duas cabeças. A metade do cérebro saía do crânio, envolvido em faixas ensangüentadas… Na boca um grito que não conseguia sair.

Oe narra esta dramática experiência, anos mais tarde, no seu romance Uma questão pessoal: “Como Apolinário, o meu filho foi ferido em um campo de batalha escuro e solitário, um campo para mim totalmente desconhecido. E chegou até nós com a cabeça enfaixada. Terei que sepultá-lo como um soldado que morreu na guerra”.

Mas as coisas tomaram um outro rumo para Oe e a sua família. “As lágrimas fáceis de um funeral prematuro – é sempre Oe que narra – não resolviam a questão. A criança iniciava uma luta feroz e desesperada para viver”.

Por outro lado, Oe percebia que a condição do seu filho era a imagem do caminho sem saída em que sua própria vida tinha chegado. Na sua indecisão sobre o que fazer com o menino, Oe confessa: “O que é que eu tinha em mim que procurava proteger daquele monstro de criança? Do que é que eu fugia assim tão intensa e descaradamente? O que, em mim, eu procurava defender desesperadamente? A resposta: um terrível nada… zero! Encontrava-me terrivelmente vazio”.

Era necessário tomar uma decisão. Se a criança ficasse no estado em que tinha nascido, logo morreria. Uma operação talvez pudesse salvá-la. Mas que tipo de vida teria? Era a pergunta que muitos se faziam. A lesão no cérebro da criança era séria e irreversível.

Uma breve viagem de trabalho de alguns dias a Hiroshima ajuda Oe a encontrar a resposta. Ali, diz ele, ” na coragem e na solidariedade dos sobreviventes da bomba atômica e dos que lhes davam assistência, encontrei a resposta. Envergonhei-me de mim mesmo. Como poderia rejeitar esta pequena vida, recém-nascida, que procurava desesperadamente sobreviver?!”

Oe optou pela vida: uma operação retirou a parte da massa cerebral que se destacava do crânio e cobriu o defeito com uma prótese. Oe optou assim por assumir a responsabilidade vitalícia de cuidar do filho deficiente. Deu ao seu filho o nome de Hikari, que significa luz.

A sua escolha, porém, segundo suas próprias palavras, “o preencheu” dando-lhe nova força e orientação criativa. Deu também um significado espiritual e religioso à existência daquele que se considerava um agnóstico declarado.

“Senti-me renascido. O meu credo tornou-se este: se conseguirmos vencer as dificuldades que a vida nos apresenta, poderemos encontrar uma nova dimensão para a existência. Sem esta “desgraça”, a minha vida estaria “condenada” como a de um escritor decadente, destinado a viver sem esperança. Provavelmente não voltaria mais a escrever e acabaria me suicidando. Quando decidi fazer de tudo para que o menino vivesse, acreditei por muito tempo que fui eu que o salvei; na realidade, foi o menino quem me salvou“.

Certa vez um crítico literário da revista Time ressaltou que nas obras de Oe “aparece sempre, de um modo ou de outro, este menino deficiente, símbolo de tragédia e portador de redenção“.

Hikari (o filho) tem atualmente 32 anos; sofre de epilepsia e de algumas malformações físicas. Entende apenas diálogos e executa tarefas simples.

A sua mãe, constatando a sensibilidade auditiva do menino, desde a sua infância encheu a casa com a música de Mozart, Chopin e Beethoven. O pai comprou para ele gravações sonoras dos cantos de muitas aves, depois de ter notado que o filho respondia aos sons dos pássaros.

Estimulado pelos pais, o pequeno aprendeu o canto de mais de 70 pássaros diferentes.

Na escola, Hikari mostrou um grande interesse pela música clássica e assim sua mãe começou a ensinar-lhe piano quando tinha ainda 9 anos de idade. Aos 13 anos ele apresentou ao professor de música a sua primeira composição. Seu ingresso no mundo musical se deu em 1991, quando foi descoberto pela gravadora Nippon Columbia. Resultado: um CD intitulado “A Música de Hikari Oe”, lançado em 1992, que se transformou rapidamente num best seller da música clássica contemporânea, na história da Nippon Columbia.

Segundo os críticos musicais, Hikari criou um novo estilo de música que atinge um público mais vasto. A sua música é pura e bela; é por isso que vende tanto.

O pai Oe, profundo conhecedor da alma de Hikari, afirma que o seu primeiro CD exprime vigor, inocência, alegria e leveza. Já o segundo CD, sempre na opinião do pai, exprime “uma noite da alma…”.

A vida na casa da família Oe não é fácil. Hikari leva a mesma vida e faz as mesmas atividades organizadas, típicas de muitos outros portadores de sérias deficiências. Portanto deve submeter-se a uma série de terapias e executar trabalhos regimentados. A vida doméstica tem seus ritmos determinados por Hikari.

Este acontecimento, diante da fama do pai e do filho, teve um grande impacto na atitude do público em relação aos portadores de deficiências. “A casa dos Oe está aberta à mídia, às entrevistas; isto contribui para a educação do público neste campo, numa cultura onde os pais tendem a esconder os filhos portadores de deficiências, por medo de serem ridicularizados – diz T. Watanabe, um dos correspondentes do jornal Los Angeles Times em Tóquio – . Muito provavelmente Hikari não se sente um ativista social que procura fazer entender à sociedade a situação dos portadores de deficiências. Mas diante do seu modo de enfrentar a realidade da epilepsia que se agrava, da memória que se vai perdendo lentamente, da diminuição da sua produção musical, os que estão ao seu redor reencontram força e ‘cura interior’ (healing)”.

Em 1996, Oe (pai) quer ir aos Estados Unidos para um ano de estudos e pesquisa literária, na Universidade de Princeton. Ao ser entrevistado, Oe disse ao repórter: “Hikari, meu filho, virá comigo aos Estados Unidos. Graças a ele continuei a viver e a escrever. Ele foi para mim como uma musa… Algumas vezes, devo admitir, me assusto diante da possibilidade de que exista um Deus que me deu este filho…”.

 

NOVAK, Miguel. Uma vida que renasceu. Cidade Nova, São Paulo, p.8-9, jul. 1995.

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